Quando ingressou na Renault, em 1997, antes mesmo de a montadora francesa instalar sua primeira fábrica no Brasil, o jovem engenheiro Luiz Fernando Pedrucci não imaginava que sairia da equipe comercial para um dia chegar à presidência da companhia. Sedento por novos desafios e muito focado em resultados, foi galgando funções em diversas áreas até que, em julho do ano passado, foi convidado a presidir a Renault Brasil. O executivo é o primeiro brasileiro a presidir a operação local da marca e se orgulha de ter moldado toda a sua trajetória dentro da companhia, algo pouco comum entre os CEOs. O momento delicado para o setor automotivo não impediu Pedrucci de levar a Renault a 7,6% de participação em 2017, recorde da companhia no País. Em 2018, pretende comemorar os 20 anos no Brasil com mais um recorde, projetando share de 8,6%. Em entrevista exclusiva concedida em 1º de novembro, data em que acumulou oficialmente a presidência da Renault para a América Latina, Pedrucci afirmou que a palavra de ordem para a região é adaptabilidade, ativo que regerá os próximos passos da companhia, que incluem a digitalização de canais de relacionamento e o investimento em modelos sustentáveis.
Por KARINA BALAN JULIO kjulio@grupomm.com.br
Fotos: ARTHUR NOBRE
Meio & Mensagem — Como foi a transição para o cargo de CEO e o que mudará na sua rotina agora que assumiu também a presidência para América Latina?
Luiz Fernando Pedrucci — Antes de assumir a presidência, já tinha trabalhado na área de supply chain por três anos e havia sido diretor-geral da Renault na Colômbia. Posso dizer que já vivenciei 70% do mercado latino e isso me trouxe algumas vantagens. A operação da América Latina está bem estruturada e temos objetivos muito claros para a região. Estamos com um plano de médio e longo prazo muito bem traçado, e toda a estratégia de produtos consolidada. Não vejo a minha mudança de cargo como uma ruptura, mas como um processo de continuidade. Não é fácil substituir um profissional de tanta bagagem como o Olivier Murguet (o executivo assumiu o recém-criado cargo de vice-presidente executivo de vendas e regiões da multinacional), mas não há grandes mudanças pois estamos muito confiantes no atendimento ao consumidor e no processo de digitalização que estamos tocando. Os resultados no Brasil têm sido muito expressivos e estamos batendo recordes atrás de recordes. Devemos terminar 2018 com cerca de 400 mil veículos vendidos e queremos chegar à marca de 600 mil em 2022.
M&M — De que forma sua experiência prévia na Renault contribui para sua posição hoje?
Pedrucci — Em termos profissionais, minha trajetória foi construída degrau por degrau. Comecei há 20 anos em uma função básica de comércio, como representante de campo, e então passei pela área de vendas, pós-vendas, distribuição, produto e supply chain. O crescimento foi consequência de um processo de amadurecimento: a companhia me dava desafios, eu entregava resultados, aprendia e crescia até receber um novo desafio. As pessoas gostam muito de falar de como fui o primeiro presidente brasileiro da Renault, e de como agora sou o primeiro presidente latino-americano para a empresa na região. O que me dá mais orgulho, porém, não é o fato de eu ser o primeiro, mas de ser um profissional criado dentro de casa. Costumo dizer para as equipes internas que se eu cheguei até aqui, qualquer um da companhia pode chegar. Sou exemplo de como a companhia dá valor para o desenvolvimento das pessoas e investe em seu potencial. Este investimento em pessoas é uma preocupação muito grande da Renault. Ficamos muito atentos para identificar e formar potenciais líderes, lhes dando desafios para que construam sua carreira.
M&M — Quais serão os próximos desafios na gestão da América Latina, considerando o contexto atual para o segmento automotivo?
Pedrucci — O mercado latino-americano, para quem não o conhece, parece um pouco difícil de entender, pois é um mercado muito volátil. As variações da indústria como um todo tendem a ser pequenas, de apenas alguns pontos para cima ou para baixo, exceto quando temos crises globais como ocorreu em 2008. O mercado latino, por outro lado, apresenta oscilações muito maiores, com crescimentos e quedas muito mais intensos. A indústria tem de lidar com isso. O grande segredo é estar preparado para reagir. Uma estratégia bem definida é importante, mas as empresas automotivas precisam ter uma estrutura capaz de reagir rapidamente ao que acontece do lado de fora. Se o contexto político ou econômico muda, não devemos nos preocupar demais com o que está acontecendo do lado de fora, mas construir uma empresa capaz de reagir rapidamente a estas mudanças. Temos de ser muito mais ágeis para identificar as tendências, criar mecanismos industriais e comerciais para reagir. A palavra-chave para o mercado latino-americano é adaptação.
M&M — Este ano, a Renault voltou a figurar entre as cinco principais montadoras do mercado. Quais foram os principais resultados de 2018 e qual foi a estratégia de negócios por trás deste crescimento?
Pedrucci — Fechamos o mês de outubro na quarta posição do mercado. No acumulado do ano assumimos a quinta posição, o que significa que subimos duas posições em relação ao ano passado. Nosso objetivo era ter 8% de market share em 2018, e vamos fechar o período com 8,6% de participação. Subir posições no mercado não era um objetivo explícito que assumimos, mas é muito legal ver esse crescimento como fruto de um trabalho benfeito. A estratégia é executada no dia a dia e as equipes aprendem à medida que vão tendo novas experiências. É muito importante o olhar sobre o locus interno e o incentivo às equipes para que avaliem as melhores oportunidades. Na década de 1950, a ONU fez um estudo para determinar o que diferenciava as pessoas empreendedoras das não empreendedoras. A pesquisa foi feita com pessoas de todas as áreas, e não apenas com empresários. Descobriu-se que o ponto comum entre as pessoas que realizavam coisas não era a educação, formação ou condição econômica, mas a capacidade de focar na solução dos problemas. Para nós, este deve ser o pensamento. “Ok, não posso alterar o que está acontecendo do lado de fora, mas o que posso fazer para trazer uma solução para esse cenário?” Trabalho muito essa filosofia com as equipes para desenvolver sua capacidade de diagnosticar o que está acontecendo, em vez de reclamar do que acontece do lado de fora. A reclamação é um processo natural, mas a ideia é que passemos muito rapidamente por essa fase e já entremos muito rápido na etapa de busca por soluções. Acredito que essa é uma das grandes virtudes que conseguimos desenvolver na Renault Brasil.
M&M — Qual é o peso do digital nos negócios da empresa atualmente?
Pedrucci — Temos feito um grande esforço no digital nos últimos anos. Não sei se ele é tão visível para o mercado, mas mudamos muito a nossa forma de comunicar. Saímos de uma postura de hard selling e passamos a agregar mais valor à nossa marca, não só na comunicação de marca e produtos, mas também na frente de varejo. Temos feito um trabalho com embaixadores de marca que nos dá bastante visibilidade, e também tivemos um case muito interessante de cobranding com o McDonald’s. O ano de 2018 coroa o trabalho das equipes de marketing e publicidade que, com muita criatividade, têm mudado a forma como o consumidor percebe a Renault. Geralmente, é muito mais fácil encontrarmos outros segmentos mais avançados na comunicação, afinal, o nosso setor é um pouco mais tradicional e conservador. Dentro do mix de marketing das montadoras, o peso do produto ainda é muito forte, por isso é um desafio deslocar a comunicação para outras áreas. Contudo, quando nos damos conta de que a Renault está concorrendo ao Caboré com anunciantes de outros segmentos, fica claro que provocamos uma ruptura de comunicação. Posso dizer que saímos do modelo tradicional pautado em páginas no jornal de domingo e temos, hoje, uma grande equipe trabalhando para aproveitar as mídias sociais, conhecer o consumidor e gerar leads. Trabalhamos de forma ampla para acompanhar a jornada dos prospects e fazer o investimento no canal certo e no momento certo da jornada do cliente. Também faço questão de sempre saber os resultados que obtivemos para cada real investido.
M&M — A empresa teve algumas experiências de venda online com o modelo Kwid. Como avalia o desempenho de canais de venda online? Pretendem dar continuidade a essa estratégia?
Pedrucci — A experiência que tivemos com a venda online do Kwid foi fantástica e resultou em um grande aprendizado. O Kwid era um projeto inovador desde o princípio, um modelo concebido para atender às necessidades do cliente a um preço acessível. Tínhamos uma grande expectativa e pensamos em testar a pré-venda pela internet. A princípio, a venda online era um modelo com data para começar e terminar, pois nossa ideia era voltar a focar no modelo tradicional logo depois da pré-venda. Imaginávamos que o formato de venda online funcionaria, mas não prevíamos que venderíamos quatro vezes mais do que o esperado na pré-venda. O resultado foi um sinal de que os clientes estão dispostos a testar este novo canal. Costumo dizer para as equipes de venda e marketing: “I have a dream, you have a problem”. Logo após a experiência com a pré-venda online, convoquei as equipes e pedi que criassem uma experiência de venda online mais completa. Queria que o cliente fosse capaz de fazer o financiamento online e negociar condições sobre seu carro usado. Depois de 46 dias, colocamos no ar um novo site com um sistema integrado a todas as plataformas da companhia. Pelo site, o cliente consegue fazer o financiamento online, bastando fornecer o CPF enquanto o software calcula seu credit score para a aprovação do financiamento. Ele então só precisa gerar o boleto e pagar para que o veículo seja enviado. A plataforma foi uma solução muito disruptiva e até agora tivemos milhões de acessos, embora o carro não seja vendido exclusivamente por lá. Alguns clientes têm jornadas 100% off-line; alguns começam no digital para então terminar a jornada em uma concessionária; e outros começam sua jornada com uma visita à loja e então efetivam a compra no digital. Também evoluímos muito na forma de oferecer serviços agregados à venda, como planos de manutenção e seguros. Falar de novos serviços digitais pode soar como algo distante, mas é algo que já está acontecendo pelo agendamento de revisões online e outros serviços a preços fixos em todo o Brasil, por exemplo. Acredito que não podemos forçar o cliente a adotar um determinado caminho, mas temos a missão de oferecer diferentes opções para ele.
M&M — Do ponto de vista mais amplo, além do digital, como estão trabalhando a gestão de canais de venda?
Pedrucci — Um desafio que nós e todas as montadoras temos é o de gerir muitos pontos de contato com o cliente. Alguns pontos de contato estão 100% sob o nosso controle e outros não, e por isso precisamos de um trabalho de formiguinha para garantir que cada vendedor, em cada concessionária, tenha a mesma atitude. Não existe milagre, pois é um sistema que envolve processos, disciplina e muitos indicadores. É relativamente fácil falar com clientes no digital com uma estrutura de acompanhamento de redes sociais estruturada. Contudo, existem outros pontos de contato sobre os quais não temos tanto controle e, por isso, investimos muito em CRM. Temos uma ferramenta integrada de ponta a ponta por meio da qual conseguimos ver se um processo foi bem seguido, se o cliente chegou à concessionária, quando acessou o Facebook da marca ou fez uma pesquisa em nosso site. Somos capazes de ter uma visão completa da jornada de um cliente, mas não existe trabalho ganho, é necessário a combinação de tecnologia e disciplina de execução. Você pode ter grandes ideias, mas, ao final do dia, se um cliente chegou a uma concessionária e o vendedor não fez o registro do consumidor dentro da nossa plataforma, o processo está furado.
M&M — Quais frentes estarão no foco dos investimentos da Renault em 2019?
Pedrucci — Nosso desafio é, sobretudo, otimizar a utilização dos nossos recursos. Estamos buscando 10% de participação no Brasil até 2022, e vamos continuar com a estratégia de produtos e renovação de portfólio para suportar essas metas. Queremos também melhorar nossa eficiência comercial e a conversão na rede, já que nosso business requer que coloquemos o cliente na porta da concessionária e fechemos a venda. Não haverá uma ruptura em 2019, vamos continuar trabalhando para ter excelência operacional, agregando tecnologias e eliminando trabalhos sem valor agregado para permitir que as equipes foquem em coisas que realmente tragam valor para a companhia. O resultado não virá de grandes iniciativas pontualmente, mas de pequenas atividades realizadas de forma excelente todos os dias.
M&M — O setor automotivo está incorporando tecnologias de mobilidade urbana, internet das coisas e inteligência artificial. Como encara o investimento em inovação na Renault?
Pedrucci — A indústria do automóvel se transformará mais nos próximos dez anos do que se transformou nos últimos 50. Temos quatro tendências globais irreversíveis resumidas pelo acrônimo ACES. A primeira tendência tem a ver com veículos autônomos (automated cars); a segunda, com carros conectados (connected cars), que farão parte da revolução da internet das coisas e serão conectados não apenas à internet, mas a outros carros em uma rede. A terceira tendência são os carros elétricos (electric cars), categoria em que estamos muito bem posicionados. Somos líderes mundiais na venda de carros elétricos. No Brasil, se resgatarmos o histórico de todos os carros 100% elétricos já vendidos, veremos que mais da metade são da Renault. Por último, vêm os carros compartilhados (shared cars), que têm a ver com inovação em serviços. Os produtos de nova mobilidade são uma tendência irreversível e vamos nos posicionar muito fortemente sobre isso. Temos uma relação muito próxima com incubadoras como Cubo e InovaBra, no Brasil, mas o grupo como um todo está evoluindo muito nesse sentido. Já temos um projeto de compartilhamento envolvendo 500 unidades elétricas do modelo Zoe, em Madrid. Vamos trazer o Zoe para o Brasil no ano que vem, embora vá levar certo tempo para entendermos a aceitação desse tipo de carro no mercado.
M&M — Um levantamento da Ipsos com jovens entre 18 e 21 anos mostrou uma queda de 20,6% na quantidade anual de carteiras de motorista emitidas entre 2014 e 2017. Enxerga algum desafio específico para dialogar com consumidores mais jovens, não necessariamente interessados em ter carros?
Pedrucci — O setor automotivo como um todo tem muito o que evoluir nas frentes de produtos e serviços. Independentemente de falarmos com millennials ou não, o princípio básico de qualquer negócio é se adaptar às demandas do consumidor. Uma coisa é criar um serviço de mobilidade para ser usado no dia a dia por consumidores solteiros, que vivem em grandes cidades e precisam de transporte até o trabalho. Outra coisa é atender a uma família ou pessoas que, aos finais de semana, precisam de um carro para viajar com sua família. O mercado é muito diverso em demandas, então haverá espaço para todos os tipos de serviços e consumidores, desde aqueles que querem ter um carro até aqueles que não querem. Nunca haverá uma solução única, pois as pessoas não são iguais. Além disso, estamos tão acostumados a ter tudo na palma da mão. Nossos concorrentes não são apenas as montadoras. O cliente compara a experiência com nossa marca com a experiência que encontra em aplicações como Airbnb e Netflix.